Permuta

0 comentários sábado, 30 de maio de 2015
Felicidade não é coisa que se adquire facilmente. Por quê? Porque não se adquire. É hóspede que chega quando menos esperamos. Pousa na gente e fica o tempo que quiser... que quiser. 

Quando chegar, o que nos cabe é tão somente acolhê-la. Com todo cuidado, para não espantá-la antes da hora. Com todo carinho para não sufocá-la com nossas exigências e dedos grandes.

Eu fui muito feliz. Um dia, dois, um mês, um ano... por uma fração de segundos. Na intensidade de um relâmpago.  Ela chegou de repente quando eu menos esperava, disfarçada de outro alguém. Ficou em mim a tempo de pôr seus ovos, depois bateu asas e voo.

Senti saudade. Ainda sinto! E como desejo ainda com ardor que ela volte?! Mas sei que desta vez é difícil precisar.  Quando ela voltar, e eu espero que volte, estará diferente, transfigurada, vestida de outro alguém ou, quem sabe,desnudada em mim.  Nesse momento, saberei reconhecê-la, a tomarei delicadamente entre os braços, beijarei sua testa, mas manterei as janelas abertas, sempre. 
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Móli

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Hermes deu a Odisseu uma erva mágica que lhe serviu de antídoto contra os sortilégios de Circe. Deus nos deu o tempo, poderoso elixir contra as feridas da alma e do coração.


Eu pensei que não teria solução. Pensei que iria sangrar para sempre. Tinha uma ferida tão grande e tão profunda que cheguei a pensar que sangraria até a morte. O tempo me fez ver que não. Eu estava tão concentrado no meu sofrimento que me esqueci de notar que enquanto o meu corpo reagia e expulsava lentamente a febre, a dor e a loucura, ele curava a minha alma e me libertava de medos e angústias primitivas.


É preciso sangrar até o fim. Deixar todo o sangue sair, ainda que se morra um tanto para viver uma nova vida.” A ferida está quase cicatrizada. Já não dói tanto quanto antes. Ou a dor se tornou infinitamente menor a ponto de eu me esquecer dela para começar a recordar de mim mesmo?
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Travessia

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Não acredito mais em amores imbatíveis. Talvez porque eu O veja como a mais frágil das criaturas, tênue bolha de sabão. De um romântico contumaz a um dissimulado pragmático, talvez cínico, tenho visto a minha vida ser revirada por sentimentos nauseantes e pela imensa vontade de saltar da prancha.

Homem ao mar! Grita o meu coração. Baixaram as âncoras, jogaram as boias. Mas prefiro momentaneamente continuar à deriva. O que fazer quando o mar com toda a sua imensidão traiçoeira se torna de repente um porto mais seguro que a própria nau?

Eu  tinha tanto medo Dele. Agora sou parte dele, instável, profundo, indomesticável.

Não acredito mais em amores imbatíveis.  Não há embarcações sólidas o bastante para singrar incólumes dentro de certos corações.  Passei por Cila, acabei por cair em Caríbdis. 

Amar é estar sempre entre dois grandes perigos.
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A intensidade de alguns amores

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"Para ser amor precisa durar toda uma vida? E se amarmos a pessoa mesmo estando longe dela? E se desejarmos a felicidade de outra pessoa mesmo sem estar com ela? Isso não é amor?" (Uma amiga)
Amores não vêm e vão. Amores verdadeiros permanecem. E ainda que se tornem irrealizáveis, passam a se alimentar de uma esperança capaz de mantê-los iluminados. O mundo, porém, não pensa assim. É fácil desprezá-los. Afinal, quantas vezes podemos apontá-los? Quantas vezes podemos ser testemunhas de uma espécie de amor assim? Mas quando um amor deste tipo nos bate à porta, nos trancafiamos à chave, fechamos as janelas, obstruímos as frestas, porque não queremos estar a sua presença, não queremos ouvir o seu chamado.
Duvidamos do que não vemos e do que é inconsistente.  Duvidamos daquilo que pode transbordar e ir mais além. Queremos apenas manter o controle, queremos apenas nos sentir seguros, que nada escape de nossas perspectivas, que nada incomode o nosso olhar.
O mundo não quer saber daqueles que amam com intensidade. Não quer saber porque amor e intensidade é pleonasmo.  Porque amar é uma forma de perturbação, com a qual não estamos acostumados, porque preferimos toda a inércia do mundo e tudo aquilo que parece seguro e confortável. Porque ser amado e retribuir dá trabalho, um trabalho que deveria ser prazeroso, generoso, mas que nos mói o coração e nos arrasta para o desconhecido.
Sabendo que um amor intenso é uma forma de amor não convencional, o ignoramos. Como ignoramos os fenômenos que nos cercam, como menosprezamos os eventos que não podemos seguramente atribuir explicação. É mais fácil, acreditar no consistente, no palpável, no que pode ser quantificado e se mostrar comum. Mesmo que este amor vulgarmente oferecido seja torto e se esvazie com facilidade.
Tememos um amor que nos tira o ar. Tememos porque ele parece ameaçar a nossa aparente sanidade, a nossa razão, com atos que julgaríamos insólitos por não estarmos habituados a ele. É como um estranho que bate à nossa porta, que estende a sua mão e nos pede abrigo. Quem, em sã consciência a abriria? Quem o deixaria entrar, o abrigaria e o alimentaria sem suspeitar de suas intenções? O amor intenso é a própria imagem da estranheza. Temos medo dele porque ele não nos é apresentado com frequência e, por isso, confabulamos e o julgamos precipitadamente.
O amor intenso é o são que corre nu à nossa frente. Tenta de maneira desesperada chamar a nossa atenção. Quer que nos desnudemos de nossas próprias vestes e o cubramos com os trajes que temos. Quem, em são consciência seria capaz de oferecer mais do que o essencial? Quem seria capaz de se dar ao outro com tanto fervor? Ele de maneira alguma desafia as leis de Deus, ou nos impede de refleti-las. Não é igual ao amor divino porque a sua busca é outra. Porque é imperfeito. Verbo transitivo que quer unir-se a um objeto e que por ser honesto e terno, nos eleva também ao coração de Deus.
No mundo, onde o que impera são as banalidades, no qual trocamos afeto verdadeiro e presencial por distâncias, o calor das relações necessárias pela frieza de uma falsa segurança solitária e individualista, o amor intenso encontra pouco terreno para germinar. Quem o acolhe no peito é tido por louco, quem o eleva a máxima potência é extremista e ingênuo porque rompe com a superficialidade e busca observar acima das nuvens.
É fácil descartarmos o amor daqueles que nos amam com intensidade porque temos medo de sermos amados por inteiro e de verdade, por enxergarmos nesse amor que não se interrompe um tipo de loucura, insanidade. Mas em contrapartida, aceitamos facilmente o amor daqueles que nos amam tortamente e com indiferença, que nos machucam com palavras e nos ferem com gestos, por acreditarmos que esse amor comum é o que apenas o mundo tem a nos oferecer como o padrão de amor. Isso não seria o mais insano? Isso não seria o ato mais arriscado?
Suspeitamos do amor que não conhecemos ou que não nos é familiar. Preferimos o descompromisso daqueles que nos amam equivocado ou que não nos amam em verdade e nem em intensidade por serem incapazes de amar ou ter compaixão.
O amor intenso nos irmana, é fiel e duradouro, nos faz reconhecer no outro as nossas fragilidades, mas nos torna contraditoriamente fortes e esperançosos.

Permanece duradouro no coração daqueles que assim amam. Poucos, é verdade. Intimida-se com facilidade diante do desprezo ou da indiferença do amado, sofre com a naturalidade da dor provocada por cada tombo, mas ergue-se com ainda mais força e determinação. Apoia-se numa verdade que o mundo desconhece e teme, e persevera por acreditar em sua própria condição digna e sublime.  
O amor intenso não é loucura e apenas uma manifestação sincera,  prece espontânea, um reflexo humano do amor de Deus. Não por a este se igualar, mas por servir de lâmpada aos pés daqueles que, na escuridão de um mundo torto e surdo, buscam também por outras vias o caminho do Altíssimo.
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